Era uma vez.....
Esta é uma estória real de um cidadão militante, que
vivenciou momentos desalentadores, crueis e sanguinários no Brasil, durante a
ditadura militar! A população mais jovem precisa saber, que nos anos 60 e 70
golpes militares iniciaram ciclos de ditadura na América Latina; e no Brasil
houve o golpe militar, que depôs o presidente eleito pelo povo, João Goulart, e
muitas pessoas foram torturadas, desaparecidas (até hoje) e assassinadas; hoje
temos uma Comissão da Verdade, mas muita coisa está velada e fechada com muitas
chaves, ainda.
Em 1964, na cidade de Belo Horizonte, um jipe do Exército
estaciona na porta da casa dos meus avós, Divaldo e Glória, pais da minha mãe,
descem dois homens armados em trajes civis, adentram a casa, a procura do
Gilney, meu tio; apenas meu avó estava em casa, e muito assustado, diz que ele
se encontrava no trabalho, no Banco de Desenvolvimento, sem saber o que estaria
por vir. Lá foram eles determinados, até o 22˚ andar do banco, na busca de mais
um militante, estudante, idealista, que incomodou o sistema por expressar sua
insatisfação e lutar contra o momento político de repressão, de um regime
militar.
No dia 30 de abril de 1964 Gilney foi preso, um jovem de
18 anos, no seu local de trabalho, iniciando uma trajetória de momentos sofridos,
inesperados e assustadores, para toda a família e para o país inteiro, pois
muitos jovens faziam parte desta luta, e a incerteza de quem voltaria pra casa.
Foi preso e passou a noite onde estava o QG da repressão.
Já no primeiro dia, fizeram um terror psicológico, com ameaças de fuzilamento e
antes do interrogatório sofreu violência física, socos e pontapés. No outro dia
foi encaminhado ao DOPS.
Logo que a família soube onde se encontrava Gilney, meus
avós foram ao DOPS, abraçá-lo, esse era o desejo de toda a família, protegê-lo.
Lá, de frente ao delegado Tharcy Sia, este foi logo dizendo: "Seu filho é
comunista, por isso está preso. E diga a ele para colaborar." E a visita foi
apenas de 10 minutos. Meu avô, mesmo discordando das idéias do filho, ali
estava emocionado, nada falava, e minha avó com muitas perguntas, queria saber como
estava sendo tratado e saíram dali certos que estariam sempre ao lado do filho
e lutariam por sua liberdade. E a luta da chamada "mãe do preso político"
iniciou, sem minha avó ter noção do que vinha pela frente.
Logo foi transferido para uma Penitenciária, em Neves, afastada
de Belo Horizonte, que havia sido inaugurada recentemente por estudantes,
sindicalistas, intelectuais, pessoas das Ligas Camponesas, dos Grupos de 11,
comunistas e todos que eram considerados subversivos, porque eram opositores
políticos aos generais.
Na luta diária da família pela soltura do Gilney foi
concedido uma prisão domiciliar, sob o compromisso de não viajar. Assim ele
pode retornar aos estudos e trabalho. Inicia o curso de medicina em 1966, mas
foi expulso do curso de medicina da UFMG, pelo decreto 477 e a luta política
continuou.
Tempos difíceis (1967/69) no governo de Costa e Silva, que
institucionaliza o AI-5, que permitia que
líderes contrários ao regime fossem perseguidos, torturados e presos sem a
necessidade de uma intervenção judicial. Além do mais, os presos políticos não
tinham direito ao recurso do habeas corpus, fazendo com que as
liberdades individuais e direitos constitucionais fossem suspensos. Uma
ditadura que elimina a tentativa de liberdades públicas e democráticas.
Ao contrário do que a família queria acreditar, a
participação de Gilney nos campos da luta política não cessou e era cada dia
mais intensa, nos movimentos de luta, passeatas e ele sabia que a qualquer
momento poderia ser preso ou morto. Naquele momento sua vida representava a
luta pelo país, pela democracia, pela liberdade de expressão e justiça social; maior
que a sua vida e a da família.
A casa caiu para meus avós, quando, no dia 21 de março de
1969, foram surpreendidos com o noticiário da TV, acusando Gilney de assalto e
tentativas de homicídio. Não durou muito, os policiais adentraram a casa de
meus avós, mais uma vez, e logo após o pessoal do exército, do DOPS e da
polícia militar, e promoveram uma verdadeira ocupação; ou seja, reinicia a
temporada de busca do Gilney e de tortura e tormento à vida familiar. O último
dia que Gilney esteve em casa fora o dia 19 de março. Ainda em Belo Horizonte enviou
um bilhete à família, dizendo que estava bem de saúde e justificando sua luta
armada. Explicou o ocorrido, que ele não havia sido o agente direto e que o
acontecido havia sido um acidente.
No final de 1969, a família recebeu uma carta do Gilney e a
felicidade foi geral, por saber que ele estava vivo. Nesta carta ele fazia também
referências a nós, sobrinhos e sobrinhas, enviando-nos beijos e abraços.
Tamanha sensibilidade e amor em pensar em todos nós, com tantos problemas e preocupações
na sua mente. Ainda muito crianças participávamos também, com sofrimento, desse
episódio, que durou muitos anos. Era uma carta cheia de dor (pelos amigos
mortos), também resignação e perseverança. A dor era grande pela repressão
política e principalmente, pela morte do Marighella, em 04 de novembro de 1969.
Da dor, não só pelo filho, mas do país inteiro, nasce a
resignação e compreensão da minha avó
Glória, uma guerreira, que não estava sozinha na luta, se juntando ao movimento
de solidariedade dos familiares de presos políticos e assim esteve acompanhando
as prisões em Ilha Grande, Milton Dias Moreira, no RJ; Penitenciária de Juiz de
Fora; o DOPS, a penitenciária feminina de BH; além dos tribunais militares,
quarteis do exército, em MG.
Gilney foi levado ao Doi-Cod/RJ, depois no Dops/RJ, passou
para o Presídio Provisório, uma tortura psicológica, além da tortura física, de
todas as formas. Quando meus avós chegaram ao Rio de Janeiro para visitá-lo, já
havia sido transferido para o presídio da Ilha Grande. E assim seguiram ao
encontro de Gilney, persistentes. Na Ilha, Gilney conheceu o Gabeira, que
estava entre os 20 presos políticos transferidos, que o ajudou na indicação de
uma advogada.
Logo Gilney foi transferido para Juiz de Fora. Essa era
uma estratégia, não permanecer muito tempo em um local. Eles deixavam minha
família louca, sem saber do paradeiro de meu tio. Quando chegaram ao RJ, para
mais uma visita, ficaram sabendo que ele não se encontrava mais no presídio da
Ilha Grande.
Foram quase 10 anos de prisão, dentre estes, ficou preso
7 anos em Juiz de Fora (Linhares). Lá era um presídio civil sob administração
militar. O exército não permitia leitura, inicialmente. Meu tio, todas as
semanas escrevia uma carta pra meus avós, queria livros, queria receber cartas,
precisava ler para se sentir vivo! Alguns dos presos em Linhares foram enviados
ao exílio em troca da liberdade do embaixador alemão. Gilney não estava na
lista. Um certo dia fui com minha mãe e minha avó visitá-lo e lá o vi por uma
portinhola, um quadrado pequeno, que víamos apenas o seu rosto, tendo que minha
mãe levantar-me. Saí assustada.
Em 1971 as coisas ficaram mais complicadas. Eles fizeram
uma greve de fome, por melhores condições carcerárias, contemplando também
outros companheiros e companheiras de luta, em outros presídios. Em setembro,
as visitas foram suspensas, pois o QG acusou os presos políticos de tentativa
de motim. O Exército tinha Gilney como chefe da Corrente da Ação Libertadora
Nacional (ALN), assim ele ficou segregado de outros presos políticos. Como era
de se esperar foi um dos primeiros da lista para ser mais uma vez transferido
para o Presídio Político do Rio de Janeiro.
Meu avô desencarnou em 1973. Gilney compareceu ao enterro
acompanhado de 4 policiais armados. Sem muito tempo, abraçou e beijou minha
avó, sem dizer palavras, com muitas lágrimas escorrendo pelo rosto e foi
embora.
Enfim, no dia 21 de dezembro de 1979 Gilney saiu do
cárcere político, sob liberdade condicional, diante de muitos entraves
burocráticos. Saiu trazendo marcas indeléveis de torturas, humilhações,
ameaças, punições, a dor pelos companheiros e companheiras desaparecidos e
mortos, mas trazia também a força e coragem da luta digna, por uma Nação livre
de repressão, pelos direitos fundantes de liberdade de expressão e ir e vir e
por um Estado Democrático de Direito.
Voltou a estudar apenas em 1980,
quando a escola de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais lhe
restituiu o direito à matrícula. Foi morar em Belo Horizonte com sua companheira
Iara, e viveu dias difíceis, em todos os sentidos, principalmente financeiro,
sobrevivendo da produção e venda de artesanato, que aprendera na prisão.
Gilney respondeu a dez
processos e só em 1985 terminou sua condenação. Mudou-se para Cuiabá e
continuou sua luta política no PT, se tornando professor da Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT), deputado federal (1995-1998) e estadual
(1999-2002) pelo PT, do Mato Grosso.
Entre 2003 e 2007 foi o secretário de políticas para o
Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente (MMA) ao lado da
ministra Marina Silva.
Hoje, Gilney é responsável pelo projeto de Direito à
Memória e à Verdade da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e atua incansavelmente
como coordenador, na luta pela formação dos comitês pela verdade nos estados. A Comissão da Verdade prevê 27 ações programáticas e o
eixo número seis trata especificamente do direito à memória e à verdade em
relação às crimes políticos como mortes, tortura e desaparecimentos.
Impossível esquecer! Queremos nossas
memórias nos livros!